terça-feira, 16 de junho de 2020

Direito do consumidor na pandemia: as novas formas de comprar e suas implicações

O tema do consumo em nossa sociedade ocupa um espaço cada vez mais central no debate. Uma primeira característica das relações de consumo é a volatilidade, ou seja, são mutáveis em um curto período de tempo. Alguns anos atrás não se poderia imaginar que hoje estaríamos comprando sem cédulas de dinheiro, sem tocar o produto, sem um vendedor ou até mesmo adquirindo produtos de países do outro lado do mundo. Todas estas mudanças exigem adaptações legislativas que forneçam uma proteção ao consumidor dentro da celeridade das relações de consumo no mundo contemporâneo.

Este enfoque é especialmente importante com a pandemia do COVID-19. Os seus desdobramentos aceleraram a transição das relações consumeristas do ambiente físico para o virtual. De acordo com um estudo realizado pela Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo 61% dos consumidores aumentaram suas compras online no período de isolamento[1]. Em virtude disto, conhecer nossos direitos e deveres enquanto consumidores ou fornecedores torna-se de suma importância neste momento.

O direito do consumidor tem sua base legal afirmada pela Constituição Federal. Em seu artigo 5º inciso XXXII e art. 170 inciso V torna obrigação do Estado legislar sobre a defesa do consumidor sendo este um fundamento da ordem econômica no Brasil. Para tanto, criou-se o código de defesa do consumidor, dispositivo essencial para viabilizar a proteção do consumidor bem como definir o âmbito de aplicação destas normas. A fim de esclarecer, em linhas gerais, o conceito de consumidor e fornecedor os artigos 2º e 3º definem consumidor como a pessoa que adquire ou utiliza o produto ou serviço como destinatário final e o fornecedor como a pessoa que desenvolve a atividade de produção ou comercialização de produtos ou serviços. Posto isso, para se caracterizar uma relação como sendo de consumo é preciso que estejam presentes essas duas partes, e sendo assim, se aplicará o código do consumidor.

A legislação consumerista é bastante clara ao reconhecer a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo. Este enquadramento se dá pois a relação consumidor-fornecedor é desequilibrada[2]: o fornecedor é um especialista, um “expert”, dispõe dos meios técnicos e dos conhecimentos mais específicos relacionados ao seu produto, enquanto o consumidor está, evidentemente, sujeito a abusos, erros e confusões. No mesmo sentido, o próprio contrato de consumo é caracterizado como um contrato de adesão[3], ou seja, o fornecedor ou alguma autoridade estipula as cláusulas contratuais não sendo possível negociá-las, apenas aceitá-las ou conformar-se em não adquirir o produto.

A pandemia, apesar de reduzir o fluxo de consumidores nas lojas físicas, ampliou exponencialmente as compras online, inclusive incentivada pelas autoridades, a fim de reduzir a circulação nas ruas. Este novo modo de comprar tem diversos benefícios: rapidez na compra, comodidade na escolha, ampla pesquisa de preços, avaliação de opiniões sobre o produto, recebimento em casa, etc. No entanto, ele gera problemas, especialmente relacionados a propagandas abusivas, o mito do crédito fácil, compras compulsivas e, claro, o endividamento. Este último desponta como uma das consequências mais preocupantes que sobrevirão da pandemia visto que, de acordo com um levantamento da Confederação Nacional dos Lojistas e do Serviço de Proteção ao Crédito 62 milhões de brasileiros estavam inadimplentes antes da COVID-19 começar a ser registrada o Brasil[4] (quase 1/3 da população brasileira!).

Com isso, fica evidente que o tema do consumo é de extrema importância e precisa ser melhor discutido, inclusive por meio de políticas educacionais do consumidor e da inserção da educação financeira no currículo escolar. A curto prazo, restam renegociações entre os devedores e seus credores a fim de não colapsar o mercado. Para estas existem instrumentos mais adequados de resoluções de conflito no direito como é o caso da mediação e da conciliação, evitando desgastes excessivos no judiciário. Não menos importante é o reestabelecimento da confiança entre consumidor (receia se endividar neste momento de crise) e fornecedor (teme um inadimplemento em massa de seus consumidores), permitindo que se siga com segurança e equilíbrio diante das novas relações de consumo que se apresentam.

Um abraço a todos. Até a próxima!



[1] Sociedade brasileira de varejo e consumo. Estudo novos hábitos digitais em tempos de COVID-19. Disponível em: http://sbvc.com.br/novos-habitos-digitais-em-tempos-de-covid-19/. Acesso em: 15/06/2020.

[2] Art. 4º inciso I do Código de Defesa do Consumidor.

[3] Art. 54 do Código de Defesa do Consumidor.

[4] VEJA. 62 milhões de brasileiros estão inadimplentes. Disponível em: https://veja.abril.com.br/economia/62-milhoes-de-brasileiros-estao-inadimplentes-diz-spc/. Publicado em: 12/02/2020. Acesso em: 15/06/2020.


quarta-feira, 10 de junho de 2020

Descumprimento de contratos na pandemia: quais as soluções?

Os contratos são inerentes à vida de todas as pessoas, em especial a partir da maioridade, quando passamos a ser capazes de realizar os atos da vida civil. Os contratos por definição envolvem um deslocamento patrimonial. Significa dizer que eles disciplinam todas as trocas econômicas desde o mais simples contrato de transporte urbano (passagem de ônibus) até os contratos complexos de formação de sociedades e licitações. Dito isso, fica claro que manter a estabilidade do instituto é primordial, pois ele é o mecanismo por meio do qual a economia se movimenta, mais especificamente, promove a circulação de riquezas[1].

O problema é que a pandemia do COVID 19 abalou essa estrutura. Diversos contratos passaram a serem descumpridos, inadimplidos e desconsiderados no momento em que adotamos a quarentena para conter a disseminação do vírus. Muitas atividades econômicas tiveram seu nicho limitado ou até proibido por determinação das autoridades, gerando um inadimplemento generalizado dos contratos: indústrias pararam sua produção e não puderam cumprir com suas entregas, lojas minimizaram suas vendas e não puderam arcar com o valor do aluguel, consumidores reduziram sua renda e não puderam pagar as parcelas de suas compras. É notável o efeito cascata que essa mudança abrupta trouxe para o direito contratual, resta buscar alternativas para contorná-la.

Para tanto, na seara contratual, o instrumento mais apto a esta situação de anormalidade é a revisão contratual. Em nossa legislação os dispositivos que tratam do tema são raros, o que denota a intenção do legislador em tratar a revisão contratual como exceção do regime. Cabe a menção aos artigos 421, 478 e 479 do código civil onde, em situações extraordinárias e imprevisíveis, em que a manutenção do contrato tornaria excessivamente onerosa para uma das partes permite-se a resolução contratual, ou seja, o desfazimento do contrato. Como forma de evitar o rompimento generalizado dos vínculos, a doutrina enfatiza a possibilidade de renegociação contratual, uma vez que os contratos oriundos da autonomia dos particulares, devem ser coerentes a ela, no sentido de recolocar as partes na situação em que se encontravam antes do fato.

Esta ideia é ainda mais importante se pensarmos no princípio da conservação dos negócios jurídicos, em que devemos atentar, sempre que possível, à revisão dos contratos e não à sua resolução[2]. O que se quer enfatizar aqui é que a imprevisibilidade dos fatos futuros é inerente a qualquer contrato, nenhum contrato será blindado às mudanças circunstanciais, e estas mudanças são ainda mais evidentes quando nos deparamos com um evento biológico como a pandemia.

O fundamento legal que fornece o amparo para tal revisão está, justamente, na pandemia, a qual, por suas características, pode ser definida como um caso fortuito ou uma força maior. A constatação desse fato indica que o contrato não pode ser executado ou executado apenas parcialmente em virtude de uma força maior, ou seja, um evento imprevisível e externo causado sem culpa de qualquer uma das partes. Quando caracterizamos um fato desta forma ele permite que o vínculo contratual seja desfeito ou modificado sem que haja uma responsabilização dos contratantes por descumprirem as cláusulas expressas do contrato. Com isso, ao demonstrar que naquelas circunstâncias não teria condições de cumprir com minhas obrigações em virtude de um fato externo e imprevisível, abro a possibilidade de resolução ou revisão contratual.

A pandemia do COVID 19 irá servir como catalisador de diversas mudanças, muitas já perceptíveis e outras que ainda virão. No âmbito dos contratos ela mostrou a importância dos institutos da revisão e renegociação contratual, até então escanteados pela legislação que ficava fixa em um ideal de imutabilidade destes. Cabe enfim, como forma de suportar os efeitos da crise nos vínculos negociais, que se intensifique a busca por alternativas como a renegociação, evitando a já saturada porta do judiciário, buscando redistribuir os efeitos econômicos negativos entre os contratantes e, assim, tornar o ambiente contratual tão seguro quanto possível neste momento delicado.

Um grande abraço a todos e até a próxima!



[1] GOMES, Orlando. Contratos. Pg. 19. 27ª edição. Editora Forense. 2019. Consulta em: 09/06/2019.

[2] GOMES, Orlando. Contratos. Pg. 185. 27ª edição. Editora Forense. 2019. Consulta em: 09/06/2019.


quarta-feira, 3 de junho de 2020

Os contornos econômicos da crise e as medidas empresariais

Barômetro Global: Economia sob efeito do coronavírus | FGV
O cenário que desponta em nossa realidade com a manutenção da pandemia do COVID-19 já por um grande período é de incertezas, medo e pessimismo. Isto porque tentar prever os efeitos econômicos da pandemia a longo prazo é, ao fim e ao cabo, um exercício de futurologia. Ainda assim, podem existir previsões a curto e médio prazo, baseadas no comportamento de empresas, consumidores e demais agentes econômicos em relação aos últimos anos. Estas perspectivas, como era de se esperar, são desanimadoras, especialmente no que tange ao crescimento econômico e melhoria de renda no Brasil.

De acordo com a pesquisa divulgada pelo jornal Estadão[1], no primeiro trimestre de 2020, as empresas sofreram uma queda de quase 70% do lucro líquido em comparação com o mesmo período de 2019, influenciada pela desvalorização do real frente ao dólar e pela pandemia. Posto o ambiente de grande dificuldade, o governo tomou medidas econômicas de auxílio a empresas, voltadas à manutenção dos postos de trabalho a fim de amenizar os duros efeitos da recessão econômica.
Para delinear os contornos da crise precisamos, em primeiro plano, entender que 2/3 do PIB da maioria dos países do mundo vem do setor de serviços[2], que abrange o comércio de bens, a prestação de serviços, a administração pública, o setor imobiliário, financeiro, etc. A própria característica deste substrato da economia é de lidar com um grande fluxo de pessoas, os consumidores, e, por esta essência, fica claramente limitado em uma situação de quarentena quando este fluxo necessário de pessoas é reduzido drasticamente a fim de evitar a rápida disseminação da doença. Por óbvio, o impacto abrupto no setor que mais contribui para o PIB do país é sentido em toda a cadeia produtiva: desde a matéria prima até as indústrias do setor secundário. Esta conjuntura exige providências imediatas e efetivas por parte do Estado.
Os planos foram propostos, inicialmente, pelas medidas provisórias 936 e 937 de abril de 2020[3]. A pauta principal de atuação com relação aos empregos formais foi a diminuição da carga horária do funcionário com redução proporcional do salário, este mantido em parceria governo-empresa, evitando uma onerosidade excessiva para o empregador, a manutenção da renda para o empregado e reduzindo a circulação de pessoas no ambiente de trabalho. Esta medida conta ainda com o benefício para o empregado de garantir o emprego pelo dobro de tempo que a empresa usufruir do auxílio governamental, justo para que estas diligências não sejam apenas temporárias.
Outro importante pilar da atuação do governo foram os benefícios creditícios, estes concedidos em parceria com a Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e BNDES. Foi também permitido que empresas renegociem o pagamento de dívidas anteriores, bem como melhoradas as condições de financiamento e concessão de crédito pela redução da taxa de juros. Por fim, frisou-se o incentivo a acordos, individuais e coletivos, voltados a suspensão temporária do contrato de trabalho no período da pandemia com o governo custeando parte do salário.
Em resumo, constatamos que o governo adotou medidas em 3 planos: pessoas, empresas e os entes federativos, estes últimos com um acréscimo de 16 bilhões a mais no fundo de participação. As providências tiveram, no geral, um caráter emergencial, voltado a surtir efeito a curto prazo e, especialmente, evitar o desemprego e o encerramento em massa de empresas. Contudo, a longo prazo, não houve uma efetiva desoneração tributária das empresas, o que ocorreu foi apenas uma postergação dos impostos em geral para os meses em que se espera uma melhora no consumo, não considerando que muitas empresas terão um balanço negativo neste período e, mesmo assim, o tributo irá incidir sobre a mínima receita bruta que obtiverem.
Se pudéssemos traçar uma perspectiva acerca do comportamento das empresas e os desdobramentos das medidas governamentais chegaremos à conclusão de que os setores que voltarão mais rápido ao mercado serão aqueles associados aos bens de consumo não duráveis como roupas e alimentos. Em contrapartida, o turismo, grandes eventos e feiras de exposições levarão mais tempo, inclusive, para serem liberados pelas autoridades. Precisamos portanto, adotar medidas que, efetivamente, desonerem os custos das empresas e possibilitem que estas permaneçam existindo, gerando riquezas e mantendo os empregos. Aliado a isso, o incentivo ao consumo, por meio de um decréscimo na taxa de juros, deve auxiliar em uma retomada no rumo da economia brasileira.
Um abraço, até a próxima.




[1] Estadão. Alta do dólar pressiona dívida e derruba lucro das empresas em 70% no trimestre. Acesso em: 02/06/2020. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,alta-do-dolar-pressiona-divida-e-derruba-lucro-das-empresas-em-70-no-trimestre,70003321722.
[2] Veja. Setor de serviços sustenta o crescimento do PIB em 2018. Responsável por 75,8% do PIB. Fonte: IBGE. Acesso em: 02/06/2020. Disponível em: https://veja.abril.com.br/economia/setor-de-servicos-sustenta-o-crescimento-do-pib-de-2018/.
[3] Treasy. Blog. Publicado em 9 de abril de 2020. Acesso em: 02/06/2020. Medidas do Governo Federal no Covid-19: confira 9 benefícios destinados às empresas durante a quarentena. Disponível em: https://www.treasy.com.br/blog/medidas-do-governo-federal-no-covid-19/.